26 novembro 2012

Fado em Mim




Rendida ao Desfado 
de Ana Moura


Sei muito bem o dia em que comecei a gostar de fado. Era verão e choveu. Ia de carro em trabalho, algures numa estrada de curvas e a música começou na rádio e encheu-se de sentidos. Dias a fio não a deixei, no pensamento. Guardando apenas as frases que a memória reteve. Qualquer coisa como

" a chuva ouviu e calou meu segredo à cidade". 

Alguns dias depois, parei na primeira loja que encontrei no percurso trabalho-casa, ao final da tarde, e comprei o álbum. Aquele resto de dia, de calor abrasador e sem pingo de chuva na rua, passei-o deitada na cama a ouvir a faixa 3 do álbum "Fado em mim", de Mariza.
Decorei a letra entre

"as coisas vulgares que há na vida não deixam saudades" 

e

"eis que ela bate no vidro trazendo a saudade", 

mas demorei vários dias até deixar o disco correr do princípio até ao fim.

O fado para mim estava em cassetes com o rosto de Amália Rodrigues que o meu avô materno tinha no carro e que nós odiávamos ouvir durante os passeios de domingo.

O fado para mim começava ali. Naquele álbum, naquela voz, naquele

"fogo do amor sobre a chuva que há instantes morrera". 

O fado a partir dali tornava-se um "fado em mim", para deixar que

"as lembranças que doem ou fazem sorrir" 

tivessem uma banda sonora muito própria.

Daí para a frente, o fado multiplicou-se comigo. Foram chegando as vozes, foram-se desvendando os álbuns, foram aumentando as dores projetadas num sofrimento alheio, da viola ou da guitarra, do fadista ou do compositor.

Ouvido nos piores momentos o fado é coisa que magoa, que intensifica o mal que se rumina, que afunda o silêncio numa solidão demasiado negra. Nos meus dias de agora, voltar ao fado é desconstruí-lo. É roubar-lhe a dor, arrancar-lhe o xaile, guardar-lhe os receios e as dúvidas, esconder-lhe as mágoas e calar-lhe a fatalidade. É quase acender uma vela e iluminar-lhe o negro. É quase limpar-lhe o rosto e abrir-lhe os olhos. É quase ver nascer, ver crescer, um novo fado em mim.



Ilustração - Jessica Grundy

13 novembro 2012

Conversas com ele

I

A passar pelo Palácio de Belém:
- Mãe, isto aqui também é uma escola?
- Não, isso é a casa do Presidente da República.
- Ah! Esse é aquele que nos rouba o dinheiro?

II

- Mãe, "puto" é uma asneira?
- Não. "Puto" não é uma asneira.

Minutos depois.
- Mãe, mas "puto" não é mesmo uma asneira, pois não?
- Não, Tiago. Não é.
- Mas "p**a" já é.

III

- Mãe, nem sabes o que aconteceu hoje na escola. Houve um menino que fez o dedo da asneira!
- O dedo da asneira?! A sério?
- Sim...
- Então e qual é o dedo da asneira?
- É este. - diz enquanto levanta o indicador.

IV

À saída da ótica de óculos novos na cara:
- Mãe, tens a certeza que os óculos novos são giros?
- São, Tiago. Ficas mais crescido e mesmo na moda!
- Ah... acho bem! É que a Mariana disse que se não gostasse dos óculos novos acabava tudo comigo.

12 novembro 2012

A guardar




"Tal como há dois lado em cada história 
há dois lados em cada pessoa. 
Um que revelamos ao mundo 
e outro que mantemos escondido cá dentro. 

Uma dualidade regida pelo equilíbrio da luz e das trevas. 
Dentro de cada um de nós 
há a capacidade para o bem e para o mal. 
Mas aqueles que conseguem esbater a linha moral divisória 
detêm o verdadeiro poder."

in Revenge
Season 1 Episode 7


Puro entretenimento com gente bonita e uma história feia, de intrigas, invejas e vinganças.
Tal e qual como na vida real.

09 novembro 2012

O som do meu silêncio

Lá pelos meus 13 anos chegou à escola aquela moda das guitarras. Todas as meninas participavam nas aulas de música extracurriculares e andavam de guitarra debaixo do braço nos intervalos.

Quando a pousavam no joelho, invariavelmente, saía esta canção:



A minha inaptidão para a música nunca me fez parte desse grupo, mas mantive-me sempre do outro lado, ficando sentada por perto quando as amigas, as mais e as menos dotadas, tocavam num tom sussurrado “hello darkness my old friend”. Lá por casa descobri até um disco antigo dos pais com a canção original e ela tornou-se parte dos meus dias de palavras e ideias, dentro de um círculo redondo, fechado e finito onde deambulava sozinha.

Por aquela altura eu ouvia ainda menos música em inglês do que nos tempos que se seguiram e, para mim, as palavras da canção praticamente começavam e acabavam no título - o tal som do silêncio que me soava tão bem. Tão inteiro. Tão real. Numa espécie de entendimento cúmplice entre os meus desejos e os meus medos. Entre as minhas ideias e os meus limites.

Criei, então, com o silêncio uma relação de intimidade, encontrando nele o espaço seguro quando manda o barulho. A minha vivência dentro do silêncio veio desses momentos para o resto da minha vida, de uma forma muito intensa e muito presente, numa intimidade palpável feita de livros e de canetas, de cadernos e de folhas, de teclados e de segredos.
Com a idade e as coisas da vida, o silêncio tornou-se um aliado. A melhor resposta para as piores questões, a melhor arma contra o ataque.

Hoje, que até já entendo e absorvo cada frase da canção, continuo deslumbrada com o som que o silêncio faz dentro de mim. E há pouca coisa que preze mais do que a total abstinência de barulho, a íntegra quietude do espaço, a calma desprovida de sons. Vejo-o como um privilégio. Como a minha maior capacidade, como um sigilo de mim comigo, como um pacto individual a preservar, a reclamar, a guardar.

Eu com ele. Ouvindo-o. Tocando-o. Deixando as pessoas conversarem sem falarem, ouvirem sem escutarem, incapazes de perturbarem o meu silêncio... tal e qual como diz a canção.