25 março 2009

Uma espécie de falta de apetite



Assim foi durante alguns Verões seguidos: em Julho lá íamos as três para a pensão junto à praia. Eu, a mana e a prima. A porta da pensão fechava às 10 e a dúzia de quartos no corredor comprido eram ocupados pelos mesmos velhotes todos os anos. Eles e nós as três. Uma única casa de banho para o corredor de quartos cheios. Um recado junto à sanita que, em quatro línguas, dizia qualquer coisa sobre poupar água. Aquelas frases em português, inglês, francês e alemão, repetidas por mim até à exaustão, como de uma cantilena se tratassem, foram nos meus 10 ou 11 anos a maneira mais fantástica de me sentir crescida. Isso e passar três semanas com a mana como nossa mãe: minha e da prima.
Daqueles tempos lembro episódios soltos misturados numa rotina com sentido: os pequenos-almoços sempre na mesma pastelaria onde a máquina das pipocas tocava uma música que ainda hoje sei imitar; o caminho até à praia de chapéu, guarda-vento e lancheira às costas; os fins de tarde na praia, com o sol a bater no mar e aquele som do areal quase deserto; e as noites, caminhando numa mesma rua para trás e para a frente, vendo e revendo os mesmos rostos, tomando parte na mesma fila para comer o mesmo doce, todas as noites.
Daqueles tempos podia recordar, simplesmente, o final de dia de cada ano em que, ao regressarmos da praia, a mana parava na cabine telefónica e, colocando algumas moedas, marcava o número da nossa casa e dizia: "Mãe, diz ao Pai para vir visitar a mana porque ela já deixou de comer...".
Passados vinte anos ainda consigo ver o meu Pai a subir a rua estreita e eu a correr para ele, arriscaria dizer a cor da roupa que ele trazia e acrescentar que espécie de força teve aquele abraço. Aos 10 anos a medida da falta que aquela pessoa me fazia via-se pela falta de apetite e colmatava-se com uma simples visita para jantar.
Hoje, vinte anos depois, lembro desta forma uma história tão minha... talvez porque só quisesse ser, agora, aquela menina que não comia com saudades do Pai.


Ilustração - July Macuada

15 março 2009

Crises de Domingo




Ao Domingo era dia de missa e de almoço em casa dos avós. Ao Domingo havia o pequeno-almoço na pastelaria do costume e o café à saída da igreja com as caras de sempre. Ao Domingo as tardes eram compridas com filmes repetidos na tv e anoitecia muito mais depressa do que se desejava.

Dos domingos da minha infância e adolescência trouxe, para o resto da vida, esta estranha sensação de finitude que acorda comigo, a qualquer que seja a hora, e me vai minando o dia por muito bom, por muito cheio, por muito especial, que ele seja. Porque os Domingos têm qualquer coisa de estranho, que os torna os dias mais pequenos da semana e os mais fugazes também... quanto mais os queremos agarrar mais se conseguem escapar.

Lembro bem os finais dos Domigos: os trabalhos de casa mal feitos para refazer; todos os planos desenhados à Sexta alinhados numa nova lista para o fim-de-semana seguinte; e a busca ingrata de razões e soluções para saltar da cama na manhã de Segunda.

Os Domingos de agora começam quando o Tigy começa também. Têm desenhos animados a manhã inteira, alguns que a mamã até já gosta. Têm uma bica do Beguinho que sabe especialmente bem neste dia. Têm uma preguiça saborososa de demorar mais o pijama no corpo, de prolongar mais a água a correr no banho, de hesitar mais na roupa a vestir para a rua. Têm almoços mais demorados, nos avós do Tigy, por casa ou na rua, como se a comida precisasse de ser mais mastigada ou melhor saboreada por ser Domingo. Têm passeios há muito imaginados e que se desejam estender por mais uns quantos dias, como se a um Domingo se sucedesse outro Domingo, e outro, e outro ainda.

E quando anoitece, ao Domingo, o dia parece que não existiu, que foram apenas alguns minutos, um ou outro instante. Até parece que não houve acordar, que não se viram desenhos animados. Chega mesmo a duvidar-se se tomámos a bica da manhã. Por vezes até se cheira o corpo procurando provas do olfacto que denunciem o banho prolongado dos Domingos. E quanto mais anoitece, mais ainda se intensifica a ideia que não houve almoço... esquecemo-nos mesmo de almoçar?! Depois, acreditamos que renunciámos a qualquer passeio! Tantos passeios para dar e hoje, Domingo, não demos passeio nenhum?! Assim, chega a hora de deitar. E é Domingo. E sabe tudo a uma angústia estúpida que o tempo passou e que não se fez nada dele. Então, deita-se a cabeça na almofada, apaga-se a luz do quarto e aí, temos a certeza, mas a certeza absoluta, que nem sequer houve Domingo. E adormeço desconfiada que é só amanhã.


Ilustração - Neal Layton

09 março 2009

Se eu fosse...

..uma bebida, só podia ser esta.




"Hola Aitana, me llamo Josep Mascaró y tengo 102 años. Soy un suertudo. Suerte por haber nacido, como tú, por poder abrazar a mi mujer, por haber conocido a mis amigos, por haberme despedido de ellos, por seguir aquí. Te preguntarás cuál es la razón de venir a conocerte hoy, es que muchos te dirán que a quien se le ocurre llegar en los tiempos que corren, que hay crisis, que no se puede. Esto te hará fuerte, yo he vivido momentos peores que éste, pero al final de lo único que te vas a acordar es de las cosas buenas. No te entretengas en tonterías, que las hay, y vete a buscar lo que te haga feliz que el tiempo corre muy deprisa. He vivido 102 años y te aseguro que lo único que no te va a gustar de la vida, es que te va a parecer demasiado corta. Estás aquí para ser feliz."

01 março 2009

Posso?





Eu sempre fui assim.
Cheia de vontades. Cheia de capacidades. Cheia do melhor de tudo. Cheia de ideias. Cheia de certezas. Mas nunca cheia de mim.

Eu sempre quis parecer assim.
Cheia de força. Cheia de coragem. Cheia de resistência. Cheia de tudo o que torna as pessoas invencíveis. Mas nunca cheguei a vencer-me a mim.

Eu sempre me fechei aqui por dentro.
Cheia de palavras por escrever. Cheia de uma vida inteira que nunca saiu de cadernos trancados em segredos sem chave. Cheia de gente que nunca foi como a inventei. Cheia de histórias que nunca aconteceram como pensei. Mas nunca cheguei a viver nada de mim.

Eu sempre repeti que tudo passa, que tudo se consegue, que vale a pena tentar.
Eu sempre insisti que a vida não pode ser só isto, que o melhor está sempre para chegar.
Eu sempre mostrei o lado mais imperturbável e mais paciente, o lado mais tolerante e mais persistente, o lado mais tranquilo e mais saudável.


Assim, será que por uns dias, escassas semanas, um ou outro mês, posso ser todo e qualquer contrário? Posso?



Ilustração - Marta Chicote